A miséria do liberalismo econômico

05.09.2022
Há um alto nível de confusão e equívoco em conceitos básicos da discussão econômica no meio liberal-libertário. Capitalismo é sinônimo de mercado? Socialismo é sinônimo de muito Estado? A riqueza do mundo foi causada pelo capitalismo? Há de fato relação entre desenvolvimento e liberdade econômica? Arthur Pavezzi comenta sobre estas e outras questões.

O debate no canal Inteligência Ltda. entre Elias Jabbour e Renata Barreto mostrou para o grande público o baixo nível intelectual que os economistas liberais, principalmente os austríacos, possuem. Há muita confusão sobre o que alguns termos basilares significam e se utilizam de métricas e índices que variam entre equivocados, errôneos e fraudulentos.

Capitalismo seria, alegadamente, sinônimo de trocas, então facilitar trocas significa mais capitalismo. Porém, só existem trocas e comércio no capitalismo? Existe comércio fora do capitalismo? Isso implica em falar em capitalismo na idade da pedra, em capitalismo tribal, em capitalismo mesopotâmico (afinal ali foi o grande início do comércio urbano), capitalismo cartaginense, capitalismo de feudo… Paralelamente, a criação de “empecilhos” às trocas seria socialismo? Teríamos então um socialismo egípcio, socialismo imperial romano (Gazeta do Povo que o diga, né?), socialismo carolíngio, etc. Tudo besteira.

Capitalismo é um sistema econômico baseado no controle pela classe dominante – a burguesia – dos meios de produção, originando-se do cerceamento de terras comuns, vendas de terras clericais, privatização (e transformação em arma) da dívida pública e acúmulo de riqueza.

Já o socialismo, por outro lado, é mais amplo, e a mesma palavra é usada para múltiplas coisas: sistema econômico, pensamento econômico, ideologia… Enquanto sistema econômico, o socialismo é baseado no controle social dos meios de produção – seja pelos proletariados de maneira coletiva, seja de uma maneira mais distributista, proudhoniana ou até algo similar aos modelos dos socialistas utópicos. Enquanto pensamento econômico e ideologia, engloba os pensadores que são contra o capitalismo e defendem a derrubada da atual classe dominante e que o poder esteja mais próximo do povo, sociedade, proletários etc.

Note que não há uma menção ao Estado em nenhuma das definições acima. Pra começo de conversa que o capitalismo não existe sem Estado, afinal as instituições que deram luz ao modelo capitalista na Inglaterra foram criadas pelo Estado. Em nenhum país do mundo que chegou na fronteira do conhecimento e/ou se tornou uma grande economia industrial o fez sem um alto nível de intervenção ou sem subsídios. Alemanha, Japão, Itália, Estados Unidos, Inglaterra, China, Coreia do Sul, Brasil, Suécia, Rússia… Quem desses se industrializou – aqui eu não falo em sair do zero, isto é, nenhuma indústria, pra alguma coisa, estou falando em verdadeira industrialização, uma escala que transforma a estrutura produtiva do país – sem a mão visível do Estado direcionando, orientando, planejando e projetando?

O índice fraudulento do Heritage Foundation, que mede a “liberdade econômica” está dividido em 10 componentes: política comercial; carga fiscal do governo; nível de intervenção governamental; política monetária; liberalização financeira; políticas bancárias e financeiras; políticas do mercado de trabalho; aplicação dos direitos de propriedade; regulamentações comerciais, trabalhistas e ambientais; e tamanho do mercado negro. Em outras palavras: leis de salário mínimo, regulamentações ambientais ou exigências de transparência na contabilidade corporativa tornam um país menos livre, enquanto baixos impostos comerciais, leis severas para devedores e pouca ou nenhuma regulamentação de saúde e segurança ocupacional tornam um país mais livre.

Suponha que o governo brasileiro passe uma lei que aumente as responsabilidades contábeis das empresas e aumente a transparência empresarial: tal jurisdição afetaria apenas a “liberdade econômica” de uma parcela minúscula da população, não a dos trabalhadores nem dos acionistas.

Tal lista classifica 177 de maneira (supostamente) objetiva do mais livre (Cingapura e Suíça) ao mais repressivos (Coreia Popular e Venezuela). O índice torna-se então uma ferramenta que seus autores podem usar para martelar sua narrativa: a liberdade econômica (como eles a definem) traz prosperidade. Como eles apontam, “as economias mais livres têm uma renda per capita mais que o dobro das ‘parcialmente livres’ e mais de quatro vezes a da ‘parcialmente não livres’”.

Mas não tão rápido!

Primeiro: os criadores do índice usam métodos no mínimo excêntricos para correlacionar prosperidade econômica e liberdade econômica. Por exemplo, de acordo com o índice, o fardo fiscal dos estados de bem-estar social sueco e dinamarquês é menor do que o dos Estados Unidos, embora os gastos do governo estadunidense sejam mais de 20 pontos percentuais menores em relação ao PIB. Esse resultado bizarro ocorre porque o índice usa a variação nos gastos do governo, e não seu nível real, para calcular a carga fiscal.

Para medir o lado tributário da carga fiscal de um país, o índice usa a alíquota máxima do imposto de renda pessoal e empresarial – e isso é igualmente enganoso. Além de ignorar o ônus de outros impostos, esses dois números não chegam às alíquotas efetivas, que também dependem de qual parte dos lucros é realmente tributada. No papel, as taxas de imposto empresarial dos EUA são mais altas do que as da Europa, como o The Wall Street Journal é rápido em apontar. Mas quase metade dos lucros corporativos dos EUA não são tributados. A alíquota média de tributação sobre os lucros empresariais dos EUA atualmente é de 15%, muito abaixo da alíquota máxima de 35%. E em relação ao PIB, os impostos de renda empresariais estadunidenses estão abaixo da metade da média da OCDE.

O índice trata a questão de intervenção governamental (na economia) de forma também falha, pois desconsidera a política industrial. Este erro crasso significa que o índice superestima a forma que as economias que mais cresceram nas últimas décadas – como Coreia do Sul e China – dependeram do setor privado enquanto subestima o papel de projetamento do governo de orientar a economia ao desenvolvimento, direcionando os investimentos e protegendo a indústria nascente.

O tratamento das economias informais é simplesmente… esquisito. O índice considera que um grande setor informal indica menos liberdade econômica porque as restrições governamentais devem ter levado essa atividade econômica à clandestinidade. Claro, você poderia ter a visão oposta: como o setor informal é em sua maior parte não regulamentado, os países com maiores setores informais são, pela definição do índice, mais livres! Porém tal visão distorce o índice. Os países em desenvolvimento tendem a ter grandes setores informais, enquanto as economias desenvolvidas geralmente têm pequenos setores informais. Isso significa que o índice reduz sistematicamente o índice de liberdade econômica dos países em desenvolvimento enquanto aumenta as pontuações dos países desenvolvidos, correlacionando artificialmente os níveis de renda com a liberdade econômica. Até colunistas do Mises Institute criticaram o índice nesse ponto. Graças em parte a esse viés, Estônia, Chile e Bahrein são os únicos países de renda média a chegar ao top 20.

Independente desse esforço para correlacionar a liberdade econômica com a renda, eles não conseguiram fazer a mesma correlação entre liberdade econômica com crescimento. As economias que mais crescem são em sua maioria economias mais “repressivas” – de acordo com a classificação do índice. Pegue por exemplo China, Vietnã e Etiópia, algumas das economias que mais crescem no mundo: eles estão, respectivamente, como 158º, 150º e 84º lugar neste ranking. Apesar dos três terem adotado algumas e pontuais reformas de mercado, suas políticas de comércio internacional e de regulação continuam como “repressivas”. E muitos dos países no topo do ranking estão com suas economias estagnadas, como a Estônia, queridinha dos liberais. Parece que não há relação entre quão rápido o PIB cresce e quão livre se é.

Um “índice de liberdade econômica” que nos diz pouco sobre crescimento econômico é uma medida descuidada que parece não ter outro propósito além de vender as políticas neoliberais que impedem os trabalhadores de todos os povos de obterem real liberdade e de tomarem os seus destinos nas suas mãos.

Um outro argumento muito comum – e muito fraco – é a de que o boom que o mundo experimentou do século XVIII para cá é resultado do capitalismo, que a riqueza do mundo e a diminuição da pobreza extrema nos últimos 250 anos se dá exclusivamente pelo capitalismo.

Bom, esse nem precisa ir muito longe para desbancar: mesmo sancionada, a URSS se industrializou sozinha e a China sozinha tirou 800 milhões de pessoas da pobreza em 40 anos. A Botsuana, outro país muito querido pelos liberais e que tem um índice muito próximo ao da Itália (!) ainda é paupérrimo, enquanto a Itália tem um dos maiores IDHs do mundo e é a oitava economia mundial. Tais fatos são o bastante para dizer com toda a certeza que nada correlaciona o capitalismo ou o índice de liberdade econômica com riqueza ou industrialização.

A quebra dos argumentos liberais não é difícil, só requer uma certa pesquisa e análise crítica de suas bases. Seus métodos não se sustentam pela análise histórica nem pela análise da própria lógica do sistema que defendem. O que lhes resta é insistir em meias verdades, distorções morais e véus de fumaça para angariar influência sobre os seus seguidores.

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